A própria frase que inspira o nosso título já enseja um conflito de interpretações.
“Navegar é preciso, viver não é preciso”.
Esta frase foi imortalizada por Fernando Pessoa em um poema intitulado “Navegar é Preciso”, mas é atribuída a Petrarcha, poeta italiano que viveu entre 1304 e 1374 e cuja obra serviu de inspiração também a Camões. Consoante os estudiosos, o real sentido dado por Petrarcha ao vocábulo “preciso”, não seria “necessário”, como adotado pelo poeta lusitano, que continua seu poema afirmando: “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”, mas sim correspondendo a exatidão, precisão. E esta interpretação soa muito mais conforme, pois a navegação, naquele período, era a ciência mais exata existente, e na qual se utilizava o maior número de conhecimentos de astronomia e os equipamentos mais avançados de tecnologia da época. Poderíamos, pois, afirmar que a navegação era uma ciência exata, ao passo que a vida – o viver –, não.
Contudo, embora pudéssemos agora nos deliciar com a poesia relida, o poeta Soares Feitosa, lança um grão de sal à nossa conclusão ao asseverar que o general romano Pompeu pronunciou aos seus soldados, marinheiros amedrontados que se recusavam a embarcar devido à guerra, a seguinte frase: “Navigare necesse; vivere non est necesse”, com certeza, no caso, não se referindo à precisão da navegação em período anterior a Cristo como uma ciência avançada.
Refiro tudo isso para justificar meu desconforto ao ser instado por alunos ou amigos leigos em Direito, acerca do alcance de normas trabalhistas quer se colocando no pólo passivo, quer ativo de uma eventual demanda, para que “adivinhe” qual será a solução judicial.
Mesmo situações que a mim parecem suficientemente claras tanto do ponto de vista legal quanto fático não podem ser respondidas com precisão absoluta, uma vez que interpretações surgem aos borbotões em cada nova peça jurídica, não se podendo a qualquer uma atribuir a pecha de absurda porque não tardará a ser acolhida em alguma decisão.
Aliás o alto índice de reformas de decisões de primeiro grau pelo TRT e deste pelo TST igualmente indica que oscilam em um espectro demasiado amplo as variações interpretativas. O que igualmente se confirma através da gigantesca reforma que o Tribunal Superior do Trabalho fez de suas súmulas, editando orientações, inclusive, exatamente em sentido oposto ao até então cristalizado.
Este nível de insegurança e incerteza não beneficia ninguém. Nem ao empresário que, ao aplicar as normas trabalhistas em sentido mais amplo, perde competitividade para concorrentes menos escrupulosos, que se valem da lentidão da Justiça para faturar sobre os direitos dos trabalhadores sonegados, nem aos trabalhadores que, diante de tal quadro, perdem as referências acerca de direitos que efetivamente tenham.
Numa visão mais pragmática se pode assegurar que às partes é melhor saber, de antemão, que não têm um direito, do que ficarem condicionados para a sua satisfação a que sua demanda seja distribuída em tal ou qual Vara, em tal ou qual Turma ou que se consiga fazer o Recurso de Revista subir.
Criou-se uma doutrina em que a interpretação literal da norma é uma coisa feia, pobre, carente de “estilo”. Assim, ao deparar-se, o operador do Direito, com uma norma explícita, com sentido claro, sua primeira reação é, de pronto, excluir a interpretação que ressalta aos olhos, buscando, a contar de então, apreender o que realmente contém a lei, que não aquilo que parece.
Esta atitude “romântica” do advogado ou do juiz criou na sociedade uma insegurança tamanha que praticamente se aboliu o cumprimento espontâneo de normas, pois absolutamente tudo pode ser contestado judicialmente – e com boas chances de sucesso.
O Judiciário deixa de ser o Poder do Estado encarregado de distribuir a Justiça para servir de palco para a contestação de toda e qualquer norma que se considere injusta, embora seja perfeitamente formada quer material, quer processualmente. Não é mais necessário se fazer política, reivindicar normas ou alterações legislativas. Não se estando conforme com a norma, busca-se interpretá-la de forma diversa, ainda que em confronto com a sua literalidade ou com a própria intenção do legislador.
A adoção da Súmula Vinculante seria, exatamente, a perpetuação deste erro: outorgar-se-ía a um órgão do Poder Judiciário a interpretação, em única instância, das leis, embora, segundo Montesquieu, seja o Poder Legislativo o vocacionado para a criação de normas e, portanto, lhe competindo definir o alcance.
Melhor seria a criação da Lei Vinculante, que deveria ser observada e aplicada por todos, exceto se sofresse de algum vício ou se, efetivamente, demandasse interpretação. Entretanto assim já é, ou deveria ser.
* Publicado originalmente no Jornal O Sul, de Porto Alegre do dia 06 de agosto de 2006 no Caderno Colunistas.